sexta-feira, 19 de maio de 2023

A CHINA E SEU ESTADO

O assunto “revolução” mereceu e merece plena atenção dos intelectuais, visto que é inerente à realidade de qualquer sociedade onde existam diferenças de classes. Atualmente, a ideia de que a História chegou ao seu fim (Francis Fukuyama) encontra espaço entre a pós-verdade. No entanto, ainda nos perguntamos: a revolução está na ordem do dia? Devemos nos interessar nos assim chamados Estados proletários? A gama de revoluções realizadas (algumas fracassadas, poucas levadas até o fim) no século XX apenas demonstrou que ainda há força e vontade para tanto. Neste texto, falaremos um pouco sobre um recorte que pode ser mais desenvolvido futuramente, e que pode interessar a alguns de nós – a revolução chinesa.

No ano de 1949, a China, o maior país da Ásia Oriental, realizou uma revolução socialista. As massas deste país, organizadas em soviets urbanos e rurais, pressionaram as estruturas de poder extremamente atrasadas daquele país, para concretizar uma série de mudanças radicais no âmbito social, econômico e político. Hoje em dia, a China é considerada por muitos como uma das maiores potências econômicas.

No entanto, existem muitos estudos contraditórios sobre a atualmente chamada República Popular da China. Desde o ponto de vista do poder, muitos enxergam esse país de forma negativa, sem, no entanto, encontrar nenhuma justificativa, visto que não se trata de um país totalitário. Mesmo assim, foi sob o governo governo dos soviets que tivemos recentemente, entre os anos de 2020 e 2021, uma China líder de vacinação. A China, apesar de superpopulosa, conseguiu organizar um plano de contingenciamento exemplar contra a Covid-19. O sucesso na luta contra o Corona Vírus na China é o reflexo da grande potência que este país é — entenda-se por “grande potência” um Estado que consegue lidar com as necessidades do povo como poucos.

A China foi escrava da pobreza por muitos, muitos anos. Esse ciclo de exploração interno e externo teve uma chance de ser superado com a revolução que aconteceu entre os anos 1925-1927. No entanto, não seria desta vez que o povo chinês e suas lideranças conseguiriam reunir todas as condições necessárias para a concretização de uma revolução. O Comintern (Internacional Comunista) fez de tudo para liderar uma revolução democrática armada – mas o que aconteceu fatalmente foi uma dispersão dos soviets entre o exército nacionalista de Chiang Kai-shek, enquanto o que deveria haver era uma unidade para a derrubada do império – ocorre então a morte de muitos militantes por meio da força violenta daquele exército. Durante algum tempo, esta derrota não foi superada, no entanto, em 1949 surge uma nova revolução, sobre a qual iremos falar.

Mas antes vamos a alguns dados históricos sobre a China do século XIX, cujas costas eram dominadas pelos ingleses, e não apenas ingleses, mas, logo, também por outras potências europeias. A partir da segunda metade do século XIX, os tai-pings se mobilizam para formar um “governo alternativo”. Embora os tai-pings tenham contribuído para o enfraquecimento da autoridade imperial, o próprio movimento também perde força. Assim surge o Yang-Wu, que decide conduzir os negócios ao modo oriental. Mas essas ideias “modernizantes” são sufocadas pelas guerras (contra a França 1884/5 e o Japão 1894/5).

A China começa a entrar no universo da modernidade apenas a finais do século XIX, quando estratos comerciais, rurais e burocráticos começam a realizar investimentos no setor industrial. Esses grandes proprietários nacionais mais tarde darão origem ao projeto político do Kuomitang (Partido Nacionalista Chinês), o qual será responsável pelos massacres de campesinos e operários em 1927.

A China, antes da revolução social, era semifeudal. O trabalho servil podia beirar à escravidão, visto que o camponês não recebia pelo dia de trabalho no sentido ordinário, mas sim pelo dia de trabalho necessário para fabricação de um produto médio diário, e assim suas horas eram “mordiscadas”, pois em quase 100% das vezes o produto médio diário exigia bem mais horas para ser fabricado do que se vinha a convir. Além disso, o trabalho servil não é problemático somente para o trabalhador, mas também obstaculiza o desenvolvimento do capitalismo, visto que é difícil manter um registro capitalista de uma propriedade feudal, ainda mais de um país inteiro onde ainda restam muitos vestígios de servidão.

Com o surgimento do imperialismo, em finais do século XIX, começam a surgir grandes contradições, em grande parte devido aos novos conflitos de classe surgidos com o começo da industrialização. Não apenas a religião (confucionismo), mas a própria penetração das mercadorias ocidentais levou à lenta desagregação da economia natural ao mesmo tempo em que arruinou o artesanato urbano e rural. Os principais parques fabris localizavam-se nas zonas portuárias centrais de Hong-Kong, Cantão, Hangchow, Shangai, etc., e isso era outro elemento de crise, visto que a economia portuária ficava à mercê dos invasores europeus.

Com a derrota de 1927, Mao Tsé-Tung assume a liderança do PCCh. Ele diz: “quem tenha arraigadas concepções revolucionárias e vá alguma vez ao campo e veja o que ali sucede, seguramente se encontrará mais alegre do que nunca. Milhões de escravos (…) os camponeses estão derrubando seus inimigos, os devoradores do homem (…) Todos os revolucionários devem compreender que a revolução nacional exige uma grande transformação no campo.” Embora Mao não esteja errado com relação à necessidade de transformar o campo, o mesmo leva os operários à noção de que a revolução deveria ser liderada em primeiro lugar pelos camponeses. O maoísmo supostamente seria uma inovação na noção sobre a revolução nas colônias, semicolônias e etc. A criação de soviets no campo, ignorando a necessidade de espalhar os soviets também nas cidades, é o que separa Mao do marxianismo. Podemos observar, a modo de exemplo, a experiência russa, onde os bolcheviques deixaram claro pros camponeses que o protagonismo seria dos operários.

Após a revolução russa de 1917, os chineses influenciados pela mesma lutaram pelos soviets, inclusive realizando um intento de revolução em 1925-1927. A derrota desta revolução fez com que os operários, uma vez desarmados, perdessem seus soviets. Mao acha que os soviets devem fortalecer-se nas aldeias, afastando-os das cidades, o que é, na concepção leninista, um grande equívoco, pois a experiência dos soviets russos ensinou pela prática que os camponeses só podem sair vitoriosos caso unidos à classe operária na insurreição. Além disso, Mao defendia que a economia agrícola não deve ser unificada pelo capitalismo. Mao Tsé-Tung parece ignorar a necessidade de se chegar ao capitalismo nas cidades, demonstrando que suas dimensões políticas não possuíam uma real consciência de classe.

A Longa Marcha, realizada entre 1934-36, foi o resultado da política equívoca, visto que tenta convencer os guerrilheiros a percorrer as províncias interioranas, no lugar de realizar a atividade revolucionária nas cidades. Diz-se que sem o exército, os camponeses não conseguiriam reerguer-se à luta armada. No entanto, o resultado do afastamento dos comunistas das cidades, fez com que mais tarde o próprio Exército de Mao acabasse se reunindo com os nacionalistas mais uma vez contra a invasão japonesa – uma guerra que poderia ser evitada com os soviets nas cidades. Nota-se que a defesa da “revolução agrária”, chamada de tal forma pelo PCCh, é um programa que acaba não ido além da vontade do campesinato. A única forma de poder político anticapitalista e revolucionário seria incorporar os operários. Nesse sentido, acredita-se que seria possível evitar a guerra sino-japonesa que viria a seguir. A própria atitude de mandar os operários e camponeses para a guerra (uma das mais longas guerras da História Contemporânea, passadas entre 1937-1945) nada mais é do que resultado de uma atitude de conciliação, que foi executada em vez de levantar a bandeira da Paz.

Apesar de tudo, querendo ou não, Mao Tsé-Tung, apresentando todas as características de falta de atitude de liderança, viu-se em um caminho que certamente nem ele quis trilhar, e acabou realizando uma revolução. A rigor, e de acordo com o marxianismo, apenas a classe operária pode liderar uma revolução socialista. No entanto, não se deve fazer pouco valor da revolução chinesa, por mais que tenha sida liderada por Mao, pois, devido à imensa pressão, acabou realizando-a. A revolução chinesa foi um momento importantíssimo na História Contemporânea, visto que reuniu operários e camponeses em combustão contra o velho mundo – ainda que sem uma direção política verdadeiramente socialista.

Em uma revolução socialista costuma ocorrer o oposto do que ocorreu no surgimento do Estado Ateniense (um dos primeiros a aparecer), onde a autoridade do povo é substituída pelo exército ligado aos exploradores. Na China, o exército representa o povo, que é a autoridade real. Temos em conta que regime de trabalho e a distribuição mudam muito em um Estado-Comuna. A China se apoia na predominância de consciência de classe das massas, principalmente nas esferas de poder e, portanto, criando vínculos superficiais entre cidadãos, acabando por levar a um desenvolvimento que conduz ao que Lênin chamava de capitalismo de Estado e o socialismo, onde a democratização das trocas acaba ocorrendo de acordo com as necessidades de distribuição de renda e socialização dos modos de produção. Outrossim, o desenvolvimento, na medida que realiza uma economia planificada (esta o centro da economia chinesa, e a chave de sua vitória), foge das leis de exploração do mercado financeiro e desenvolve uma economia muito mais proveitosa para o bem comum. Não existe a associação livre comunista na China ainda. A associação livre pode ser alcançada na medida em que quanto mais justa a troca, menos a necessidade de supervisão para que ela venha a existir. Mas algo mais próximo disso, e cada vez menos capitalista, faz parte do dia a dia do povo chinês.

A colaboração entre campo e cidade existe desde as primeiras formações sociais, tendo de um lado os agricultores e de outro os artesãos. Países como a China precisam potencializar ambos os tipos de produção e auxiliá-los, dada esta combinação, a formar uma economia proveitosa, livre do capital financeiro. Na Revolução Francesa, os jacobinos e girondinos disputavam entre si pelas dimensões cosmopolitas que representavam. Disputavam as possibilidades da palavra “revolução” para a sua época. O jacobinismo, em muitos aspectos, se assemelha aos bolcheviques (1917) no que concerne ao seu caráter progressivo, porém de outra época. Dizem que o maoísmo foi a tradução do marxismo para as condições semi-coloniais ou que a revolução maoísta teria superado a bolchevique porque a primeira não havia sofrido nenhuma invasão após a tomada do poder, ao contrário dos bolcheviques, que foram agredidos após a revolução de 1917. No entanto, nada pode justificar os oito anos de guerra que ocorreram antes da revolução, quando Mao Tsé-Tung e o Partido Comunista Chinês não propuseram realmente uma revolução que trouxesse (nos termos dos bolcheviques) “Paz, Pão e Terra”.

A necessidade do capitalismo de Estado mesmo após a realização da revolução socialista se deve a que o próprio socialismo é uma expressão da transformação de um regime em outro. Ou seja, o socialismo surge das características estruturais do próprio capitalismo. A moeda, historicamente concebida assim, serve para regular as trocas. No capitalismo a moeda ainda é necessária para se obter coisas. No Estado-Comuna o socialismo já existe. No entanto, o comunismo, com a extinção do Estado e total ausência de moeda, encontra-se em processo de realização. Portanto, defendemos que o capitalismo dee Estado não é um fim em si, não guia todas as coisas; o que nos guia é o comunismo. No caso chinês, esse processo de transição socialista vem sendo impulsionado pelos soviets e pelo PCCh, de modo que podemos considerar que Fukuyama estava errado ao ditar o “fim da História”, pois o socialismo é o nosso futuro.

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